folhas da minha história

01 junho, 2011

Kate, 2010



“Deveria haver um estatuto de limitação da dor. Um manual que diga que não há problema em acordar a chorar, (…) Que não haverá nenhuma multa se tivermos a necessidade de arrumar a sua secretária; de tirar os seus desenhos do frigorífico; voltar uma fotografia tirada na escola quando passamos – apenas porque nos fere de novo só por vê-la.
(…)
Durante muito tempo, o meu pai afirmava ter visto a Anna no céu nocturno. Ele insistia que as estrelas eram pessoas tão bem amadas que eram dispostas em constelações  (…). A minha mãe acreditou, durante muito tempo que a Anna voltaria para junto dela. (…) Eu? Eu comecei a odiar-me a mim própria.
(…)
A dor é uma coisa curiosa, quando acontece inesperadamente. É um penso rápido a ser arrancado, levando a única coisa que mantém a minha família unida.(…) Houve alturas em que passei dias seguidos fechada no quarto com os auscultadores nos ouvidos, para não ouvir a minha mãe chorar.
(…)
Eu sentei-me a ver televisão e assisti a um velho episódio de I Love Lucy e comecei a rir. De imediato, senti-me como se tivesse profanado um altar. Pus a mão sobre a boca, envergonhada. O Jesse, que estava sentado ao meu lado no sofá, disse:
- Ela também haveria ter achado graça.
É que, por muito que queiramos agarrar-nos á amarga e dolorosa lembrança de que alguém deixou este mundo, ainda nos encontramos nele. E o próprio acto de viver é como uma maré: de inicio parece não ser nada importante, e então um dia olhamos para baixo e vemos o quanto a dor consumiu. (…) Porque mesmo quando não falávamos sobre a Anna, ela ficava nos espaços entre as palavras, como o cheiro a queimado.
(…)
E depois, como se a tivéssemos invocado, a última fotografia era da Anna. (…) A minha mãe e eu ficamos sentadas á mesa da cozinha a olhar para a Anna até ao Sol se pôr, até termos a certeza de ainda estarmos a vê-la nitidamente. A minha mãe deixou-me ficar com aquela fotografia. Mas eu não a emoldurei; coloquei-a dentro de um envelope, fechei-o e enfiei-o no fundo duma gaveta dum armário. Está lá, para o caso de um dia destes começar a perdê-la. Pode haver uma manhã em que eu acorde e o rosto dela não seja a primeira coisa que eu veja. (…) Quando começo a sentir-me assim vou até á casa de banho, levanto a camisola e passo muito suavemente os dedos pelas linhas brancas da minha cicatriz. Lembro-me de como, no início, achei que os pontos traçavam o seu nome. Penso no seu rim a trabalhar dentro de mim e no seu sangue a percorrer as minhas veias. Eu levo-a comigo, para onde quer que vá.


Jodi Picoult, "Para a Minha Irmã"

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